Princípio da concordância não contraria ponderação de
bens
Por Néviton Guedes
Tem sido divulgada entre nós, como fundamento de uma
incontida, mal explicada e mal compreendida oposição à técnica
da ponderação de bens, a falsa hipótese de que Konrad Hesse teria oposto
o princípio da concordância prática (Das Prinzip der praktischen
Konkordanz), que, consoante sabemos todos, de fato encontrou no grande
constitucionalista um sensível e honesto defensor, à ideia de ponderação
de bens, que, segundo os críticos, receberia dele fervorosa oposição.
O presente artigo tem por escopo investigar essas duas
hipóteses: (a) a primeira, de ordem mais histórica do que teórica, saber se, de
fato, Konrad Hesse opunha-se de forma absoluta à ponderação de bens; (b) a
segunda, de ordem teórica e que vincula a primeira, saber se procede — lógica e
teoricamente — a tese de que o princípio (como é vulgarmente conhecido)
da concordância práticade fato se opõe á técnica da ponderação de
bens.
Tendo escrito uma tese precisamente sobre ponderação e
colisão de direitos fundamentais, sou daqueles que entendem existir atualmente
no Brasil, é preciso reconhecer, um desconfortável abuso na técnica da
ponderação de bens. Contudo, não vou ao ponto, considerado o abuso de um
instrumento, de negar-lhe ou desmerecer todas as suas propriedades,
especialmente, quando se cuida, no caso da ponderação de bens, de solucionar
casos difíceis de colisão de bens e “valores” constitucionais.
Concordância prática
Ninguém terá dificuldade em aceitar a ideia básica que sustenta o postulado da concordância prática, isto é, a ideia de que, havendo colisão de bens protegidos constitucionalmente, como tem sido acentuado por boa parte da jurisdição constitucional mundo afora, deve-se favorecer decisões através das quais ambos os direitos (ou bens constitucionais), em conformidade com a possibilidade de seu equilíbrio e proporcionalidade, sejam garantidos, em autêntica concordância prática[1].
Ninguém terá dificuldade em aceitar a ideia básica que sustenta o postulado da concordância prática, isto é, a ideia de que, havendo colisão de bens protegidos constitucionalmente, como tem sido acentuado por boa parte da jurisdição constitucional mundo afora, deve-se favorecer decisões através das quais ambos os direitos (ou bens constitucionais), em conformidade com a possibilidade de seu equilíbrio e proporcionalidade, sejam garantidos, em autêntica concordância prática[1].
De fato, o princípio da concordância
prática afirma que a aplicação de uma norma constitucional deve
realizar-se em conexão com a totalidade das normas constitucionais. Por conseguinte,
a concordância prática afirma que as normas constitucionais devem ser
interpretadas em uma unidade[2].
Em tal contexto, obviamente, há de se interpretar as normas constitucionais de
modo a evitar contradições entre elas.
Konrad Hesse, por sua vez, ao definir o princípio da
concordância prática, afirma expressamente que, na solução de problemas
jurídicos, os bens constitucionalmente protegidos devem ser coordenados uns com
os outros, de tal forma que todos ganhem realidade[3]. Na sequência, completa seu
pensamento com a seguinte afirmação: “Onde surjam colisões, não se pode,
mediante uma “precipitada ponderação de bens” (vorschneller
Güterabwägung) ou muito menos uma “abstrataponderação de
valores” (abstrakter Wertabwägung), realizar um (bem jurídico constitucionalmente
protegido) a custa do outro”[4].
(Grifos não existentes no original).
Segundo K. Hesse, além disso, o princípio da concordância
prática impõe uma determinação de limites a esses bens jurídicos em colisão de
tal forma que, em consonância com o princípio da proporcionalidade, ambos
ganhem uma realização ótima. A proporcionalidade nestes casos representa,
segundo o autor, uma relação entre grandezas variáveis e apenas se justifica
aquela que melhor realiza a tarefa de otimização[5].
Contudo, como corretamente afirma Laura Clérico, bem
observado, o princípio da concordância prática não diz o que seria
proporcional em concreto. Em conclusão, diante disso, sobretudo diante das
objeções levantadas por Konrad Hesse contra as “precipitadas ponderações
de bens” e “asabstratas ponderações de valores”, é que se legitima a
questão aqui sob consideração: seria mesmo o princípio da concordância prática
incompatível e até contraditório com a ideia de ponderação de bens?
Sejam essas ideias um pouco mais estendidas e
aprofundadas.
Concordância prática como ponderação
Ingo von Münch, ao anotar que no Tribunal Constitucional alemão se formou acentuada tendência de resolver as colisões de direitos fundamentais pela ponderação de bens no caso concreto, demonstra que, entretanto, não há incompatibilidade entre concordância prática e ponderação.
Ingo von Münch, ao anotar que no Tribunal Constitucional alemão se formou acentuada tendência de resolver as colisões de direitos fundamentais pela ponderação de bens no caso concreto, demonstra que, entretanto, não há incompatibilidade entre concordância prática e ponderação.
Esse célebre autor alemão, falando do país onde mais se
verificou a discussão crítica sobre a ponderação de bens e a concordância
prática, afirma que a chave para a compreensão do método adotado pelo tribunal
alemão não está sempre no deslocamento ou completo afastamento de um dos
direitos fundamentais envolvidos na colisão, situando-se, mais exatamente, na
busca pelo tribunal de um confronto ou comparação entre os direitos fundamentais
colidentes, de tal forma que, em caso de colisão, devem ser considerados ambos
os princípios constitucionais na tentativa de se buscar um ponto de possível
equilíbrio e ajuste entre os bens constitucionalmente protegidos. Contudo, não
sendo isso possível de ser alcançado, e nem sempre será, deve-se decidir,
então, levando-se em consideração a conformação típica do caso concreto bem
como suas circunstâncias especiais, qual dos interesses há de retroceder
(procedendo-se à ponderação)[6].
Informa ainda Ingo von Münch que, na tentativa de
confrontação de princípios, deve-se guardar obediência à orientação de que a
comparação feita deve ser a mais cuidadosa e moderada possível. Tudo isso
porque o princípio da unidade da constituição impõe a tarefa de uma
otimização, com o que ambos os princípios possam, cedendo mutuamente, chegar a
uma efetivação ótima[7].
Na sequência de sua análise, como se dizia, entretanto,
Ingo von Münch revela a compreensão de que Konrad Hesse, ao advertir contra uma
eventual “precipitada ponderação de bens” (vorschneller Güterabwägung)[8] em casos de colisão de
interesses constitucionais, está objetando apenas o adjetivo “precipitado”,
sendo certo, pois, que Konrad Hesse não se põe, pelo menos em absoluto,
contrário à ponderação mesma de bens[9].
Na mesma direção, Laura Clérico afirma que, bem
compreendidos os termos das advertências de Konrad Hesse, há ali um
desenvolvimento da tese da congruência, segundo a qual a produção da
concordância prática, em verdade, corresponde à ponderação de bens[10].
Robert Alexy também demonstra não existir qualquer
contradição entre o princípio da concordância prática e os juízos de
ponderação. Ao referir-se a Konrad Hesse, Alexy não discorda de sua advertência
quanto à inadequação de uma ponderação precipitada ou abstrata,
já que o seu modelo de ponderação, como se sabe, centra-se num procedimento que
além de não precipitado, já que se impõe a análise de todas as circunstâncias
pertinentes ao caso, mostra-se também não abstrato, uma vez que se desenvolve a
partir da análise do caso concreto.
Fazendo expressa remissão às preocupações de Konrad
Hesse, afirma Robert Alexy[11]: O
modelo de fundamentação aqui apresentado evita uma série de dificuldades, que
frequentemente são vinculadas ao conceito de ponderação. Ele torna evidente que
a ponderação não é um procedimento no qual um bem “precipitadamente”
(vorschnell) é realizado à custa de outro. Segundo ele a ponderação é tudo bem
diverso de um procedimento abstrato (abstraktes) ou geral. (...) Já
do conceito de princípio resulta que na ponderação não se trata de uma questão
de tudo-ou-nada (Alles-oder-Nichts-Frage), porém de uma tarefa de optimização.
Neste ponto, o modelo de ponderação aqui defendido corresponde ao assim chamado
princípio da concordância prática.
Além disso, que a concordância prática corresponde também
em alguma medida à ponderação de bens demonstra-se pelas seguintes
razões: (1) em primeiro lugar, à semelhança da ponderação de bens, o
princípio da concordância prática exige também a consideração obrigatória dos
princípios constitucionalmente relevantes que estejam envolvidos na
colisão; (2) em segundo lugar, a concordância prática também recorre,
como a ponderação, a todas as circunstâncias de fato para a avaliação da colisão; (3) também
na concordância prática, repetindo ideia essencial à ponderação de bens, a
colisão de princípio deve-se diferenciar do conflito de regras, uma vez que
entre princípios, como se sabe, a realização de um não pode significar, como
nos conflitos de regras, a invalidade do princípio que foi
afastado; (4) mais uma vez, à semelhança do que ocorre na ponderação
de bens, também a concordância prática não oferece nenhum critério material
geral para solução das colisões de bens jurídicos constitucionais em
colisão; (5) aqui como lá, em cada caso se desloca o problema para a
aplicação do princípio da proporcionalidade[12].
Esses aspectos comuns à concordância prática e ao modelo
de ponderação, como compreendido a partir das lições de Robert Alexy, afastam a
possibilidade de uma ponderação de
bens precipitada ousuperficial como solução para o problema das
colisões de princípios ou direitos fundamentais. Porém, deixe-se claro mais uma
vez: não é recusada a ponderação de bens em si, mas tão somente o tiposuperficial ou precipitado de
ponderação.
Princípio da proporcionalidade
Em conformidade com as ideias acima desenvolvidas, Laura Clérico pôde afirmar que a produção da concordância prática, na verdade, é um subcaso do exame de proporcionalidade[13]. De fato, seria de todo incoerente, como demonstra uma das mais respeitadas estudiosas do tema da proporcionalidade e da ponderação em todo o mundo, que aqueles que defendem a concordância prática recusem a ponderação de bens e ao mesmo tempo exijam que, em concreto, os limites dos bens jurídicos constitucionais em colisão fossem estabelecidos de maneira proporcional, uma vez que, consoante se sabe e bem demonstra a autora, a máxima da proporcionalidade inclui no seu terceiro nível a proporcionalidade em estrito sentido, ou seja, a ponderação de bens[14].
Em conformidade com as ideias acima desenvolvidas, Laura Clérico pôde afirmar que a produção da concordância prática, na verdade, é um subcaso do exame de proporcionalidade[13]. De fato, seria de todo incoerente, como demonstra uma das mais respeitadas estudiosas do tema da proporcionalidade e da ponderação em todo o mundo, que aqueles que defendem a concordância prática recusem a ponderação de bens e ao mesmo tempo exijam que, em concreto, os limites dos bens jurídicos constitucionais em colisão fossem estabelecidos de maneira proporcional, uma vez que, consoante se sabe e bem demonstra a autora, a máxima da proporcionalidade inclui no seu terceiro nível a proporcionalidade em estrito sentido, ou seja, a ponderação de bens[14].
Além disso, é fácil notar que, em muitos casos, apenas o
recurso ao princípio da concordância prática não permitirá resposta convincente
aos problemas relacionados às colisões de direitos fundamentais. A ideia de
concordância prática tem, por exemplo, evidentes limitações nos casos em que,
queira-se ou não, a decisão tem que contemplar sacrifícios concretos de
direitos fundamentais. Para uma melhor compreensão, intua-se o caso de
abortos legal e constitucionalmente admitidos. Pergunta-se: em que medida se
pode continuar a falar de concordância prática quando se cuida, em tais
situações, de eliminar a vida do nascituro? Como falar, em consonância com a
gramática da concordância prática, de realização ótima de ambos os bens envolvidos
na colisão, quando um deles é concreta e ineludivelmente sacrificado? Como
insistir que neste caso um direito não possa ser realizado com o sacrifício do
outro? O que remanescerá da vida em gestação, que é sacrificada, para ainda
falar-se de concordância ou equilíbrio entre direitos[15]?
Portanto, nesses casos limites a concordância
prática apresenta evidente déficit de argumentação e, no entanto, mesmo essas
situações extremas devem ser conduzidas por uma movimentação metódica que
permita ao aplicador da norma, diante de casos difíceis e, contudo,
inevitáveis, formar o melhor e mais racional juízo possível. É aqui, portanto,
que a ponderação de bens se apresenta como suporte argumentativo mínimo para a
fundamentação de uma decisão racional.
Aos estimados leitores que me dão a honra de sua qualificada
leitura, informo que, a partir de hoje, retomando a periodicidade
da coluna Constituição e Poder, terei o enorme prazer intelectual de
dividi-la semanalmente com o Doutor Marco Marrafon, professor da UERJ e
atual presidente da Academia Brasileira de Direito Constitucional, um dos mais
qualificados juristas da nova geração, que transita com a qualidade de poucos
tanto pelo território da Teoria Geral do Direito como da Teoria e do Direito
Constitucional.
[1] Sobre
o princípio da concordância prática, veja-se K. Hesse, Grundzüge des
Verfassungsreschts der Bunderrepublik Deutschland, p. 28, 142, 148, 171, 174,
182 e 183. Cfr. também C. Schmitz,Grundrechtskollisionen zwischen politischen
Partein und Bürgern, p. 22 e 23.
[3] Konrad
Hesse. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland,
(parágrafo 72), p. 28.
[5] Konrad
Hesse. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik
Deutschland, p. 28; Laura Clérico. Die Struktur der Verhältnismäβigkeit,
p. 218.
[8] Conferir
em Konrad Hesse. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundersrepublik
Deutschland, p. 28.
[11] Robert
Alexy. Theorie der Grundrechte, p. 151 e 152. No mesmo sentido, Laura
Clérico. Die Struktur der Verhältnismäβigkeit, p. 218.
[15] Como
se sabe, exceção feita à solução dada ao aborto nos Estados Unidos, em Roe
v. Wade(410 U.S. 113), na qual a Suprema Corte negou que houvesse ali uma
verdadeira colisão de direitos fundamentais (não por negar a existência de vida
antes do nascimento, mas com o artifício quase banal de não reconhecer o feto
como pessoa capaz de titularizar direitos), em regra, não há como fugir à
compreensão de que no aborto o direito à vida da criança por nascer é
sacrificado em benefício de direitos da mãe como liberdade, autodesenvolvimento
da personalidade, privacidade, etc. Sobre o ínicio da vida e a exata
delimitação da colisão de direitos fundamentais existente em cada caso de
aborto, ver BVerfGE 39, 1.
Néviton
Guedes é desembargador federal do TRF da 1ª Região e doutor em Direito
pela Universidade de Coimbra.
Revista Consultor Jurídico, 14 de abril de 2014.
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