Falsa carência e cabimento dos embargos infringentes
Por José Rogério Cruz e Tucci
Preferindo
prestigiar o velho instituto de origem lusitana — e sem qualquer justificativa
plausível —, foi o recurso de embargos infringentes acolhido na atual
legislação processual civil em vigor.
Assim, fiel à tradição, os embargos infringentes
continuaram a ser admitidos como o recurso interponível perante o mesmo
tribunal de que emanado provimento judicial não unânime, proferido em apelação
ou em ação rescisória.
Até o advento da reforma processual instituída pela Lei
10.352/2001, tal meio de impugnação, a teor do artigo 530 do Código de Processo
Civil, tinha cabimento, em princípio, contra acórdão, não unânime, de qualquer
natureza (terminativo ou definitivo), proferido em apelação ou em ação rescisória.
Cumpre observar que, na prática, a desmedida
procrastinação do procedimento recursal decorrente da interposição dos embargos
infringentes abonava a tese em prol de sua extinção, sendo certo que, nesse
particular, o valor da celeridade deveria se sobrepor ao anseio de justiça da
decisão.
Não obstante, infenso às críticas, o reformador acolheu
integralmente a ponderada sugestão de Barbosa Moreira, que, de lege ferenda,
propusera restringir o cabimento do recurso, “excluindo-o em alguns casos, como
o da divergência só no julgamento de preliminar, ou em apelação interposta
contra sentença meramente terminativa, e também o de haver o tribunal
confirmado (embora por maioria de votos) a sentença apelada...” (Comentários ao
Código de Processo Civil, vol. 5, 15ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2009, pág.
524).
A leitura da primeira parte do renovado artigo 530 revela
que efetivamente a interposição dos embargos infringentes ficou reduzida a duas
únicas hipóteses, quais sejam, quando o acórdão não unânime, que tiver julgado
o mérito da causa: a) houver reformado, em grau de apelação, a sentença; e b)
houver julgado procedente o pedido deduzido em ação rescisória.
Verifica-se que, na atualidade, não mais se admite o
referido recurso contra julgamento de apelação em que a divergência ocorra
sobre o objeto formal do processo (pressupostos processuais e condições da
ação), ou, ainda, quando o acórdão confirmar, por maioria, a sentença de
procedência ou de improcedência.
Doravante, pois, a adequação dos embargos infringentes
contra acórdão proferido em apelação exige dois pressupostos, a saber: i) que
tenha sido provido o recurso por maioria de votos para reformar a sentença; e
ii) que a divergência diga respeito ao meritum causae, ou seja, ao objeto
material do processo (cf., a propósito, Recurso Especial n. 645.437-PR, 1ª
Turma do STJ, rel. Min. Teori Albino Zavascki).
De um lado, confere-se aí maior prestígio às sentenças de
1° Grau, e, de outro, evita-se discussão, muitas vezes de cunho meramente
acadêmico, sobre tese de natureza processual.
Considerando a redação do inciso III do artigo 105 da
Constituição Federal, vem atribuída ao Superior Tribunal de Justiça a
prerrogativa de julgar em recurso especial “as causas decididas, em única ou
última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos Tribunais dos
Estados, do Distrito Federal e Territórios”.
Desse modo, conclui-se que apenas os pronunciamentos
emitidos por órgãos colegiados de 2° Grau são passíveis de impugnação por meio
do recurso especial. A supra citada regra constitucional impõe, portanto, como
pressuposto genérico de admissibilidade do recurso especial, que não sejam
cabíveis embargos infringentes contra o acórdão, alvo da impugnação.
É exatamente este o teor do enunciando da Súmula 207 do
STJ: “É inadmissível recurso especial quando cabíveis embargos infringentes
contra o acórdão proferido no tribunal de origem”.
Delineia-se, assim, imprescindível o esgotamento das
“vias recursais ordinárias” para que tenha cabimento o recurso especial.
Saliente-se, por outro lado, que a imprecisão da redação
do artigo 530 do CPC tem gerado notória polêmica na doutrina e na
jurisprudência.
Todavia, a análise do posicionamento mais recente de
nossas cortes acerca dessa questão demonstra que a melhor orientação é a que
realmente inadmite a oposição de embargos infringentes quando o acórdão, por
maioria de votos, extinguir o processo sem julgamento de mérito.
Precedente da 2ª Turma do STJ, no julgamento do Recurso
Especial 953.894-PR, teve oportunidade de assentar que: “A Lei 10.352/01, ao
alterar a redação do artigo 530 do CPC, restringiu o cabimento dos embargos
infringentes às hipóteses em que houver reforma da sentença de mérito por
acórdão não unânime em apelação ou julgamento de procedência de pedido
formulado em ação rescisória por acórdão não unânime”.
Esse mesmo posicionamento prevaleceu em julgado da 4ª
Turma do STJ, já agora no Recurso Especial 1.223.610-RS, relatado pela ministra
Maria Isabel Gallotti, textual: “Não são cabíveis embargos infringentes contra
acórdão que, por maioria, reforma sentença de mérito, reconhecendo a existência
de coisa julgada, o que ensejou a extinção do processo sem exame do mérito”.
Em suma: à luz da legislação processual em vigor, os
embargos infringentes são cabíveis apenas contra acórdão não unânime, proferido
em apelação, que enfrenta o mérito da controvérsia!
Todavia, em algumas circunstâncias excepcionais, a
despeito de o processo ser aparentemente extinto, em grau de apelação, sem
julgamento do mérito, na verdade e por paradoxal que possa parecer, o tribunal
enfrenta matéria de fundo.
Com efeito, a 3ª Turma do STJ, no julgamento do Recurso
Especial 932.119-SC, de relatoria do ministro Paulo Sanseverino, foi instada a
interpretar situação na qual o tribunal de origem, por maioria de votos,
reformou a sentença de 1° Grau, acolhendo os embargos à execução e extinguindo
a execução por força de carência da ação.
Nesse caso, o STJ destacou o cabimento dos embargos
infringentes exatamente porque, “ao analisar a nulidade do título em razão do
desvio de finalidade, o acórdão embargado realizou verdadeiro juízo de
mérito...”.
Aduza-se que, a respeito dessa temática, em particular
sobre as condições da ação, noticia Machado Guimarães que o próprio Liebman
chegou a admitir, em conferência proferida no ano de 1949, que: “todo problema,
quer de interesse processual, quer de legitimação ad causam, deve ser proposto
e resolvido admitindo-se, provisoriamente e em via hipotética, que as
afirmações do autor sejam verdadeiras; só nesta base é que se pode discutir e
resolver a questão pura da legitimação ou do interesse. Quer isto dizer que, se
da contestação do réu surge a dúvida sobre a veracidade das afirmações feitas
pelo autor e é necessário fazer-se uma instrução, já não há mais um problema de
legitimação ou de interesse, já é um problema de mérito” (Carência de ação,
Estudos de direito processual civil, Rio de Janeiro, Ed. Jur. e Univ., 1969,
pág. 102).
Enfatiza, a propósito, José Roberto dos Santos Bedaque
que, considerada a dogmática processual, o único modo de traçar a distinção da
categoria das condições da ação do mérito da demanda é pela profundidade da
cognição. Se, por exemplo, o juiz, após exame profundo do fato constitutivo
afirmado na inicial, conclui pela ilegitimidade passiva do réu, na verdade, ele
está julgando improcedente o pedido. “Essa visão do fenômeno ‘condições da
ação’ amplia a possibilidade de o processo cognitivo terminar com sentença de
mérito, afastando o grande número de falsas extinções por carência, que tantos
problemas têm causado ao sistema” (Efetividade do processo e técnica
processual, 3ª ed., São Paulo, Malheiros, 2010, pág. 258).
Cumpre registrar que tal doutrina foi expressamente
prestigiada em recente acórdão cujo voto condutor é da lavra da ministra Nancy
Andrighi, proferido pela 3ª Turma do STJ no julgamento do Recurso Especial
1.157.383-RS. Admitindo o cabimento dos embargos infringentes, restou então
decidido que, in verbis: “A atual redação da norma, conferida pela Lei
10.352/01, passou a fazer referência expressa à reforma de ‘sentença de
mérito’, de sorte que, uma análise isolada e apriorística do dispositivo legal,
indica a intenção — ao menos aparente — do legislador, de excluir do rol de
acórdãos suscetíveis de embargos infringentes aqueles em que sejam proferidas
decisões terminativas. Argumentar-se-ia, nesse sentido, que, a teor do que
estabelece o artigo 268 do CPC, o trânsito em julgado de uma decisão
terminativa não impede a parte de retornar a juízo com igual pretensão,
instaurando um novo processo, motivo pelo qual não haveria nenhuma violação do
direito de acesso à justiça, tampouco negativa de prestação jurisdicional. Há
de se ter em mente, no entanto, que em se tratando de condições da ação, não
obstante a matéria seja formalmente considerada processual, ela na prática pode
envolver a análise do próprio mérito da controvérsia. Diante disso, assume
relevo a teoria da asserção, que ganha expressão na doutrina, secundada por
juristas como Ada Pellegrini Grinover e Kasuo Watanabe. Para os adeptos dessa
teoria, como é o caso também de José Roberto dos Santos Bedaque, na análise das
condições da ação ‘se o juiz realizar cognição profunda sobre as alegações
contidas na petição, após esgotados os meios probatórios, terá, na verdade,
proferido juízo sobre o mérito da questão’ (Direito e Processo, São Paulo:RT,
1995, p. 78). Em outras palavras, sempre que a relação existente entre as
condições da ação e o direito material for estreita ao ponto da verificação da
presença daquelas exigir a análise desta, haverá exame de mérito. Ainda que
tacitamente, a teoria assertiva encontra respaldo em julgados desta Corte, nos
quais entendeu-se que a decisão acerca das condições da ação implicou numa
sentença de mérito. Confira-se, nesse sentido, os seguintes precedentes: REsp
1.680/GO, 4ª Turma, Rel. p/ acórdão Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJ de
13.02.1990; REsp 2.185/GO, 4ª Turma, Rel. Min. Barros Monteiro, DJ de
14.05.1990; REsp 86.441/ES, 1ª Turma, Rel. Min. José de Jesus Filho, DJ de
07.04.1997; REsp 103.584/SP, 4ª Turma, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira,
DJ de 13.08.2001. Assim, em respeito ao devido processo legal, o artigo 530
deve ser interpretado harmoniosa e sistematicamente com o restante do CPC,
admitindo-se embargos infringentes contra decisão que, a despeito de ser
formalmente processual, implicar análise de mérito. Essa exegese se faz
necessária inclusive para fazer valer a vontade do próprio legislador que, na
justificativa do projeto da Lei 10.352/01, afirmou somente ser conveniente
manter os embargos infringentes quando ‘a divergência tenha surgido em matéria
de mérito, não simplesmente em tema processual’. No que tange especificamente à
legitimidade ad causam, sua verificação invariavelmente exige a análise da lide
em concreto, havendo enorme dificuldade prática em separar tal questão do
mérito da causa. Ainda que se admita o exame da legitimidade in statu
assertiones, muitas vezes é no curso do processo que se chega à efetiva decisão
sobre tal condição da ação, importando, dessa feita, na análise da relação
jurídica de direito material. Na espécie não foi diferente. Verifica-se que o
juiz de 1º Grau de jurisdição somente se pronunciou acerca da legitimidade
passiva por ocasião da prolação da sentença, depois de toda a prova ter sido
carreada aos autos. Também o TJ-RS, ao reformar por maioria a sentença,
concluindo pela extinção do processo em relação ao banco com fulcro no artigo
267, VI, do CPC, foi obrigado a se imiscuir no próprio mérito da ação,
notadamente a efetiva participação da instituição financeira no resultado
danoso. Note-se, por oportuno, que a natureza da decisão, se processual ou de
mérito é definida por seu conteúdo e não pela mera qualificação ou nomen juris
atribuído ao julgado, seja na fundamentação ou na parte dispositiva....
Aduza-se que a Constituição Federal assegura
expressamente a todos os sujeitos de direito a garantia de acesso a justiça
(artigo 5º, XXXV e LIV) e da ampla defesa, com todos os meios e recursos em lei
admitidos (artigo 5º, LV).
Desse modo, verifica-se que, para esgotar a via recursal
ordinária, diante da situação acima descrita, considerando a técnica processual
(artigo 530 CPC) e o enunciado da Súmula 207 do STJ, a parte interessada deverá
opor o recurso de embargos infringentes.
Acrescente-se por fim que, assegurado o recurso na
legislação processual, desde que preenchidos os requisitos legais, o litigante
tem o direito subjetivo ao julgamento daquele. Caso contrário, vale dizer,
recusado pelo Poder Judiciário o exame e o respectivo julgamento da impugnação,
adequadamente manejada, haverá injustificada ofensa às garantias de acesso à
justiça e, em especial, da ampla defesa!
José Rogério Cruz e Tucci é advogado. Ex-presidente
da Associação dos Advogados de São Paulo. Diretor e Professor Titular da
Faculdade de Direito da USP.
Revista Consultor Jurídico, 22 de abril de 2014
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