quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Riscos de uma pesquisa empírica em Direito no Brasil

Riscos de uma pesquisa empírica em Direito no Brasil

Por Otavio Luiz Rodrigues Junior


A produção do conhecimento jurídico radica-se tradicionalmente na atividade doutrinária. É bem verdade que esse papel, outrora preponderante, tem-se reduzido drasticamente nos últimos anos, por variegadas razões, muitas delas inventariadas em um texto publicado em 2010, intitulado Dogmática e crítica da jurisprudência (ou da vocação da doutrina em nosso tempo.[1] Com a internet, o acesso às decisões judiciais tornou-se democrático. Já lá se vão os tempos em que a consulta aos acórdãos, nos famosos “repositórios autorizados de jurisprudência”, era um atividade de caráter (quase) esotérico, dado o custo das assinaturas das revistas de julgados.
Um dos efeitos colaterais dessa ampla abertura dos bancos de dados pretorianos foi a perda de referencial da doutrina, que passou a dizer, por meio de paráfrases grosseiras, aquilo que os juízes afirmam, sem se preocupar com a atividade de crítica jurisprudencial, que é esperável da dogmática, e deixando de lado sua função histórica de sistematizar o conhecimento jurídico, a partir de seu estudo racional e orgânico. Evidentemente que há outras causas para esse contínuo desprestígio da doutrina, ao exemplo da mudança de posições na medida em que a própria jurisprudência altera seus rumos.
É óbvio que não se concebe a doutrina em seu “esplêndido isolamento”, para se usar de uma expressão do século XIX. Mas, daí a percebê-la como um instrumento voltado a “macaquear da sintaxe” pretoriana, como diz o famoso verso de Manuel Bandeira, é também outro exagero.
Como reação a esse processo de perda de relevância da doutrina, nos últimos anos, desenvolveu-se um discurso em favor da chamada “pesquisa empírica em Direito”. Estudiosos sérios, a maior parte deles ligados às disciplinas propedêuticas, começaram a denunciar a mediocridade de textos jurídicos que exalam o odor de um praxismo estéril, verdadeiros trabalhos forenses adaptados e convertidos em artigos com pretensiosa aparência de cientificidade. São aqueles textos repletos de expressões como “ante o exposto”, “não assiste razão ao autor” ou, ainda, com os clássicos “o pranteado autor” ou “o irreprochável entendimento”, que até bem cabem em uma petição, mas soam desconfortavelmente em um artigo enviado para um periódico científico.
De uma necessária denúncia a tais práticas acadêmicas, esse discurso também produziu indesejáveis efeitos colaterais. Surgem, na atualidade, trabalhos acadêmicos com o propósito explícito de “superar” ou “quebrar paradigmas”, verdadeiros novos chavões, e que expõem as limitações da produção jurídica anterior. Em geral, esses textos dedicam-se a uma “pesquisa empírica” de dados jurisprudenciais. Como decidiu o Supremo Tribunal Federal em ações diretas de inconstitucionalidade sobre políticas públicas de saúde? Ou qual autor é o mais influente na formação do pensamento dos tribunais? Em muitos desses artigos, é notável a postura de diferenciação, com certo ar de superioridade, em relação aos textos não-empíricos. A verdadeira e sã ciência só se produz com a empiria, o restante seria a exibição inútil do velho ranço bacharelesco.
Muito bem, essa busca pela empírica nos estudos jurídicos é extremamente bem-vinda. O diálogo do Direito com a Sociologia, a Antropologia, a Estatística ou a Economia é necessário e enriquecedor. Não é admissível, porém, é a apropriação do adjetivo “empírico” para caracterizar algo que não possui essa qualidade. Dito de outro modo, como se escrever uma tese com pretensões etnográficas sobre o infanticídio em tribos indígenas, sem nunca se ter pesquisado diretamente em uma tribo? Não é possível ser um Bronislaw Malinowski, autor do clássico Os argonautas do Pacífico Ocidental (1922), sem o convívio com o objeto de sua investigação. A não ser que estejamos diante de um Malinowski do Google.
Para não estender desnecessariamente o objeto desta coluna, vai-se ficar com um dos pontos mais controvertidos dessa “onda” de empiria na pesquisa jurídica: o levantamento de dados jurisprudenciais. É crescente o número de estudos sobre como decide o Supremo Tribunal Federal, quais os fundamentos de suas decisões, os autores mais citados e como são resolvidos os casos de controle concentrado. Apresentam-se números e, quando há maior requinte, gráficos e tabelas, o que causa uma boa impressão no leitor.
O problema que se coloca, então, é o seguinte: qual o rigor dessas pesquisas? A resposta a essa questão deve ser oferecida tomando-se por base uma singela constatação: à exceção do Superior Tribunal de Justiça, que possui a única base de dados verdadeiramente universal do país, contendo todas as decisões (colegiadas e singulares) e todos os despachos publicados desde sua instalação, desconheço um tribunal que disponha de semelhante acervo de julgados. Se existir, é provável que seja um tribunal local, mas dificilmente terá todas as decisões, desde sua instalação, em razão de que, a maior parte deles foi instituída ainda no século XIX.
Para se limitar essa objeção ao rigor das pesquisas “empíricas” de jurisprudência aos textos publicados sobre o Supremo Tribunal Federal, bastam duas importantes informações, que provavelmente são desconhecidas do grande público: 1) o STF não publica todas as decisões colegiadas que foram estampadas nos diários de Justiça; 2) suas decisões monocráticas são publicadas por meio de uma seleção de entre as “mais relevantes” (nunca entendi ao certo qual o critério objetivo utilizado para lastrear essa escolha), o que implica dizer, um número enorme de decisões não é lançado na base de dados do STF. De modo explícito, é absolutamente adequado afirmar que não há uma “base de dados universal” de acórdãos e decisões monocráticas do STF, ainda que se limite a pesquisa, por exemplo, ao ano de 2012.
Só haveria duas formas de se realizar uma pesquisa confiável, em termos de rigor científico, das decisões do STF: 1) delimitar o período da investigação, sair da internet e levantar diário por diário da Justiça, a fim de se proceder a uma coleta segura de dados; 2) apresentar um critério estatístico, capaz de atenuar ou prever os efeitos dos desvios inerentes a uma pesquisa com dados incompletos. Fora disso, só é possível fazer afirmações sobre “tendências” ou “impressões” a respeito dos julgamentos do STF, com a necessária advertência ao leitor de que existem essas dificuldades em uma pesquisa realizadas apenas com base em consulta ao sítio eletrônico do tribunal.
Não é possível afirmar, com base em uma mera consulta ao banco de dados do STF, que determinado autor é mais ou menos influente. Pode-se dizer que ele foi citado um número específico de vezes na base de dados, o que é bem diferente de assegurar que tal autor foi mencionado em “todas” as decisões da corte em um dado período. Ao contrário, essa é uma afirmação possível em relação ao STJ, se a pesquisa estiver limitada à internet. Se, porém, inexiste segurança, pelas razões já apresentadas, nos dados coletados no sítio do STF, perde-se grande parte da “superioridade intelectual” que alguns pretendem enxergar na “pesquisa empírica” da jurisprudência. Seria o caso até de se discutir se tal adjetivo pode realmente qualificar esse substantivo.
O discurso contra a doutrina jurídica tradicional, quando informado pela defesa da “pesquisa empírica”, torna-se perigoso por outra razão: dificilmente os números são contrariáveis por meros argumentos. Faz-se necessário contrapor números a números. Se alguém afirma que o STF é conservador ou liberal, leniente ou duro com políticos corruptos, garantista ou não, fazendário ou patrimonialista, e apresenta em favor desse argumento uma “pesquisa empírica”, é muito difícil refutar essas conclusões. No entanto, salvo raras exceções, muitas das conclusões sobre o STF, extraídas de investigações exclusivamente fundadas em sua base eletrônica, sofrem de um vício de origem. E, em grande medida, não se diferenciam muito de “opiniões” pessoais, ao passo em que surgem com o péssimo efeito de mascarar resultados imprecisos com a majestática imunidade da empiria.
Não se pode esquecer de outros detalhes que, muita vez, são solenemente ignorados em algumas “pesquisas” sobre o STF. A estrutura do processo constitucional no Brasil, influenciada que foi pelas complexas regras do processo civil, é marcada por nuances e sutilezas, que terminam por afetar qualquer exame global dos resultados de seus julgamentos. O reconhecimento de questões processuais, preliminares ou prejudiciais, pode ter impacto decisivo no julgamento, sem que disso se extraiam (ou permitam extrair) ilações sobre o pensamento do tribunal em relação a uma dada matéria. Se o STF entende que é incompetente para julgar políticos sem foro especial, a rejeição desses casos jamais pode-se confundir com a absolvição genérica de tais agentes, como, erroneamente, se afirmou há alguns anos. Sem se descer a tais detalhes, o que só é possível com a leitura integral dos acórdãos e não a mera consulta às ementas, o resultado da pesquisa está comprometido.
O Tribunal Constitucional Federal da Alemanha divulgou um relatório de “estatísticas para o ano fiscal de 2012”. Em um dos campos, está a relação dos julgamentos de leis e atos normativos cuja constitucionalidade foi objeto de impugnação de 1951 até 31 de dezembro de 2012. Pode-se saber, por exemplo, que, de 1951 a 1991, houve 23 normas federais e 12 normas locais consideradas totalmente inconstitucionais, em julgamentos colegiados. É possível fazer-se tal levantamento no Brasil? É provável que sim. Desde que se pesquisem os diários da Justiça. Alguém já fez isso?
Muitos autores brasileiros, como Roberto Fragale Filho; Fernando Fontainha; Alexandre Veronese; Horácio Wanderley Rodrigues; Martônio Mont’alverne Barreto Filho; ou Marcelo Varela, há bastante tempo, desenvolvem pesquisas empíricas de elevada qualidade. É perfeitamente possível levar adiante projetos dessa natureza, embora isso tome muito mais tempo e exija mais dedicação do que meros levantamentos de dados em repositórios eletrônicos. Essas pesquisas são até úteis, desde que se faça a advertência quanto a seu caráter puramente exemplificativo ou, se a pretensão é oferecer um dado realmente empírico, com o oferecimento do modelo estatístico utilizado. Se a universalidade (considerada a existência de dados desde a instituição do órgão) é hoje uma nota restrita a poucos tribunais, um deles o STJ, faz-se indispensável a redução das ambições dos pesquisadores e a informação ao leitor quanto às limitações objetivas da pesquisa. Afinal, não há nada mais perigoso do que o uso manipulado ou desastroso de informações teoricamente neutras e objetivas.
O único conforto que o Brasil pode ter a esse respeito é que, como bem lembrado por Alexandre Veronese, os Estados Unidos viveram problema semelhante há alguns anos, quando a febre pela “pesquisa empírica” fez com que muitos estudiosos do (ou no) Direito se aventurassem por esse campo, produzindo verdadeiras aberrações (em termos estatísticos) e as vendendo ao público como verdades consagradas pela empiria. Foi necessário que estatísticos ou pessoas com tais conhecimentos começassem a publicar estudos que desmoralizavam tais supostas “conclusões científicas”. Como iniciamos agora essa nova fase na pesquisa em Direito no Brasil, ainda é tempo de se corrigir os rumos.

[1] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Dogmática e crítica da jurisprudência (ou da vocação da doutrina em nosso tempo).Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 99, n. 891, p. 65-106, jan. 2010. A íntegra desse artigo está disponível aqui.

Nenhum comentário:

Postar um comentário